“A criança que fui chora na estrada,
Deixei-a ali quando vim ser quem sou,
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui, onde ficou.”
Fernando Pessoa
A figura da “criança interior” tem um lugar especial, há muitos anos, quer em termos de espiritualidade, quer de psicologia. Cada um de nós tem a sua própria história e todos nós fomos influenciados pelo nosso ambiente, eventos e pessoas importantes que nos rodeiam. A nossa criança interior guardou essas memórias, assim como o impacto que essas influências tiveram sobre nós.
Até à idade dos seis anos, o nosso cérebro é particularmente recetivo e, qualquer experiência, qualquer abuso, acidentes, traumatiza profundamente, ainda que não exista uma noção clara e consciente disso. De forma elementar, assumimos defesas, aprendemos a lidar com os outros, tomamos decisões internas, sobrevivemos neste “mundo difícil e, por vezes, muito cruel”. Mas fica tudo gravado e registado, as marcas ficarão lá a condicionar toda a vida.
As nossas experiências posteriores irão reforçar muitas das crenças adquiridas na infância e irão formar um “mapa” que iremos projetar, muitas vezes de forma inconsciente, para o resto da vida. Como adultos, carregamos connosco muitas dessas ideias, algumas delas baseadas em medos, pensamentos irracionais desencadeados por quedas e traumas que nos aterrorizaram e por “feridas” que nunca curaram ou cicatrizaram muito mal… Neste contexto, faz sentido rever certas experiências da criança que já fomos e descobrir as marcas significativas, muitas inconscientes, que estão a ter uma influência marcante no nosso roteiro de vida.
Existem muitas situações em que ainda não se compreenderam nem ultrapassaram questões que permanecem no subconsciente a limitar ou a fazer-nos repetir pensamentos e comportamentos sem sentido. Na maioria das vezes, estamos a viver a vida como uma criança dentro do corpo de um adulto – e a criança dentro de nós anseia por compreensão, cuidado e apoio.
Podemos tentar silenciar esse desejo mais profundo com múltiplos afazeres, excesso de consumo ou de trabalho, mas haverá sempre um profundo vazio por preencher. Esse vazio corresponde a algo de fundamental que ainda não foi escutado, nem alcançado.
Sinais de que a sua criança interior está “ferida”
Existem sinais que insistem em nos fazer ver que algo não está bem e que é preciso fazer alguma coisa para alterar o sentido da nossa existência. Devemos curar aquilo que sentimos “doente” e a única forma de o fazer é abrir o “baú das vivências passadas”, reviver e entender experiências que marcaram, compreender a existência, de forma mais madura, limpar e perdoar coisas que já não fazem sentido, ou seja, respirar uma nova e ampla visão da vida.
Estes sinais de desconforto interior manifestam-se através de bloqueios que nos causam dor, que nos trazem problemas de relacionamentos, agravam sintomas crónicos de saúde, travam a fluidez da vida, e surgem nos momentos mais inoportunos ou na hora das decisões mais difíceis.
Alguns desses sinais têm a ver com a autoestima, a imagem do corpo, desequilíbrios emocionais, comportamentos perante os outros, problemas de identidade, compromisso, atitudes rígidas ou frouxas, dificuldades sexuais, ser uma vítima permanente, problemas de intimidade. Os sinais são muitos, mais evidentes ou mais disfarçados, mas o que interessa é ser sensível àquilo que se passa dentro de nós, fazer uma paragem para entender, adotar uma atitude de indagação mas, ao mesmo tempo, de compreensão, de perdão e construção.
“A tua criança interior ainda relembra a Luz…
mas fica confusa com muitas memórias do passado.
Ajuda fazendo-a ver que ela está aqui mesmo, dentro de ti.”
Mercedes Guzman
Resgatar a criança interior
Existem várias atitudes diárias que ajudam a entender e a sanar muitas “feridas” da nossa criança interior.
- Recorde a criança especial e maravilhosa que era, naquele tempo.
- Crie ou visite, de vez em quando, um lugar seguro e único onde se possa encontrar com a sua criança interior.
- Crie o hábito de, de vez em quando, falar com a sua criança interior. Seja meigo, paciente, reconfortante e, principalmente, transmita confiança na vida.
- Desconstrua e liberte qualquer complexo de culpa. Tudo o que se passou, tinha razões para acontecer naquela altura. Neste momento, a vida pede uma libertação completa para poder abraçar novos horizontes!
- Tenha orgulho na criança que foi. Respeite essa criança e valorize todas as suas ações.
- Pense em si próprio como um Ser saudável, emocionalmente equilibrado, forte e maduro, capaz de dar continuidade à criança que foi. Pense no orgulho que essa criança teria em si!
Pense que o mundo e as pessoas não são perfeitos mas que, apesar disso, é capaz de fazer o melhor por si e por aquela criança que habita o seu subconsciente. Esse é o seu projeto, esse é o seu propósito de vida.
“Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão.”
(Carl G. Jung)
A Criança Divina que nos habita
Nestas linhas aborda-se a criança física que todos nós fomos e a melhor forma de a integrar na nossa vida atual. No entanto, todos nós temos uma essência em nós, uma Luz que poderíamos chamar de criança divina. Esta é uma expressão que traduz o pensamento do Grande Mestre “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus.”
É que a inocência da criança que fomos contém em si a Luz Divina, a espontaneidade, a leveza, a liberdade, a autenticidade, a serenidade, a paz, a fé, a coragem. Essa é a Luz que irradia no nosso interior, trazendo respostas a tantas dúvidas e o alcance de um sentido maior de existir, do nosso propósito de vida. Essa é a Luz que cura!
Quando reencontramos a nossa criança, frágil, quando nos aproximamos e passamos a estabelecer uma relação sincera com ela, percebemos, aí, um potencial de harmonia e um entusiasmo capazes de dar um novo significado a experiências de dor que já vivemos. Resgatar a criança interior é, portanto, um processo profundo, que envolve a vontade de reencontrar a “criança ferida”, curá-la e amá-la e, nesse caminho, ser tocado pelos raios de luz da nossa criança mais íntima e eterna, a Criança Divina.
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